COMPAIXÃO COM CARA, CHEIRO E NOME
Compaixão é uma virtude que acompanha o ser humano desde o inicio do seu
processo de humanização e que o ajuda a distinguir-se de outros animais. O
termo é de origem latina (compassione) e de difícil explicação,
pois pode assumir diferentes significados, sendo facilmente confundido com piedade (capacidade de sentir-se triste
com a tristeza dos outros), com pena
(capacidade de sentir-se numa condição melhor ou superior à de quem sofre), com
solidariedade (capacidade de sentir-se
solidus, parte consistente do mesmo
corpo), com simpatia (capacidade de
sentir-se participante das alegrias, dores e tristezas de outrem) e com empatia (capacidade de meter-se na pele
de outro).
Do ponto de vista etimológico pode-se dizer que compaixão significa
“paixão com”, podendo ser associada à paixão com que se coloca incondicionalmente
ao lado do outro que sofre injustiças, seja ele humano ou animal; do miserável
ou rico; do imbecil ou intelectual; do pecador ou santo; do ateu ou religioso. Talvez
por isso, o assunto tem estado, por séculos, na agenda dos debates de
religiosos e filósofos, tanto da antiguidade quanto da modernidade.
Sócrates (469–399 a.C), por exemplo, que desprezava veementemente o
sentimentalismo bufão, associou a compaixão ao desvirtuamento de caráter
causado pelo terror, pelo medo e pelo pânico diante de arbitrariedades e
perseguições sofridas por outrem, enquanto Aristóteles (384-322 a .C.) a compreendia como positiva
quando relacionada com (1) um mal que está destruindo alguém, (2) que não
merece está passando por aquilo e (3) igualmente pode atingir a mim. Já Zenão
(séc. III a.C.), fundador do estoicismo, defendia ser a compaixão um grande
erro moral, pois a apathea, a indiferença à dor, às necessidades, ao
sofrimento, aos males e às agruras da própria vida ou de outrem é o ideal da
lei racional.
O filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860), geralmente associado ao
cinismo e ao pessimismo desvinculava a compaixão (“amor puro”) de qualquer
religião e crença e defendia ser ela necessária para enobrecer o caráter do ser
humano. Para ele, a compaixão leva à bondade e ao auxilio do seu semelhante,
assim como à prática de atos de justiça e de amor ao próximo. Para o igualmente
filósofo alemão Max Scheler (1874-1928) a compaixão é a busca por tentar
compreender a angustia do outro, enquanto se mantém a consciência de que nada a
ela se assemelha.
É certo que filósofos judeus e Cristãos também têm refletido sobre o
assunto. Entretanto, polêmicas à parte, suas Escrituras Sagradas apresentam tanto
Yahwew quanto Jesus como plenos em compaixão. Eles agem movidos por compaixão. Na
verdade é a compaixão que lhes “põem em movimento”, que lhes “vocacionam” a
atuar em favor de outros.
No livro do Êxodo, por exemplo, são os gritos do povo sofrido e oprimido
que desperta em Yahwew a vocação de libertador (Êxodo 2.23-25; 3.7-18) e nos
Evangelhos, é o mendigo-cego Bartimeu (Mateus 20.29-34; Marcos 10.46-52; Lucas
18.35-43) quem, a partir das suas necessidades brada insistentemente provocando
em Jesus a liberação de uma ação compassiva que o tira da sua situação
humilhante.
Era, portanto, inadimitível para os escritores sagrados pensar em Yahwew
e em Jesus como modelos de apatia e indiferença ante o sofrimento humano, como propunham
os filósofos estóicos. Tampouco podiam eles defender que as ações de Yahwew e
de Jesus fossem movidas por um sentimentalismo causado por pânico ou temor. Ao
contrario, os escritores do Antigo e Novo Testamentos testemunham que o agir de
Yahwew e de Jesus advém da (com)“paixão”
pela justiça, pela verdade, pelo retorno à esperança e ao equilíbrio.
Assim é que as Sagradas Escrituras judaico-cristã apresentam a compaixão
tanto de Yahwew quanto de Jesus como modelos para o povo de Deus, visto ser
formada por atitudes, decisões e ações realizadas não somente porque uma pessoa
ou povo está sendo destruído pelo mal, ou porque um inocente está sofrendo ou
ainda por solidariedade (“o mesmo pode acontecer comigo”), mas para que a
justiça seja restabelecida, o inocente seja amparado e sinais de esperança
sejam percebidos e presenciados.
Desta forma, pode-se afirmar que mesmo não havendo consenso universal,
do ponto de vista da teologia cristã a compaixão está conectada com ações. Quer
sejam elas espontâneas ou programadas, desde que visem a promoção e a defesa da
vida, e a divulgação de valores que estabeleçam a verdade e a justiça.
Assim sendo...
...Onde hinos são entoados, crentes são anestesiados, o individualismo é
celebrado, o sucesso buscado e os pobres são desprezados, compaixão tem cara,
cheiro e nome, pode chamar-se Karl Marx, entre outros e outras.
...Onde a repressão é geral, a moral é “por debaixo dos panos” e Deus é feito
à imagem e semelhança do ser humano, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode
chamar-se Freud, entre outros e outras.
...Onde as botas e os fuzis impõem o medo, dão toque de recolher, fazem
calar, ameaçam, perseguem e torturam, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode
chamar-se Dietrich Bonhoefer, Oscar Romero ou Helder Câmara, entre outros e
outras.
...Onde os direitos humanos são violados, crianças são desrespeitadas,
adolescentes abusado(a)s e idosos maltratados e pessoas sendo destratadas por
causa da cor da sua pele, compaixão passa a ser ações concretas com cara,
cheiro e nome, podendo chamar-se Nelson Mandela, Martin Luther King, entre
outros e outras.
...Onde os pobres são mantidos por gerações como “intocáveis”, sem
possibilidade de mudanças e quando a fome lhes impede de ter esperança e sonhos
por melhores dias, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se William
Booth, Madre Teresa de Calcutá ou Irmã Dulce, entre outros e outras.
...Onde uma nação é invadida, suas manifestações culturais proibidas, a
violência normatizada e a incoerência entronizada, compaixão tem cara, cheiro e
nome, pode chamar-se Mahatma Ghandi, entre outros e outras.
...Onde a natureza é explorada de forma gananciosa, sem nenhum
compromisso com as gerações vindouras, compaixão tem cara, cheiro e nome, tem
greve e discurso ainda que feito por um matuto como Chico Mendes, entre outros
e outras.
...Onde a fé é confundida com religião, com sentimentalismo barato, com gestos
teatrais e com domesticação dos fiéis, mesmo que para isso a manipulação seja
aplaudida, a falta de escrúpulos bem vinda e Deus não honrado, compaixão tem cara,
cheiro e nome, pode chamar-se René Padilla, Miguez Bonino, Carlos Mesters ou
Leonardo Boff, entre outros e outras.
...Onde a hipocrisia é quem manda, o fingimento é quem que reina e a
falta do uso da razão é espiritualizada, compaixão tem cara, cheiro e nome,
pode chamar-se Rubem Alves, entre outros e outras.
...Onde o analfabetismo é bem visto, o subemprego bem quisto e esse salário
mínimo defendido, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Darci
Ribeiro ou Paulo Freire, entre outros e outras.
...Onde mulheres são imbecilizadas, violentadas, espancadas e
assassinadas, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Catherine Booth
ou Ivone Gebara, entre outros e outras.
...Onde a classe média tornou-se insensível, os miseráveis passaram a
ser invisíveis, a fé é vivida de forma descomprometida e descompromissada com o
próximo, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Viv Grigg, entre
outros e outras.
...Onde... compaixão é qualquer ação realizada em nome e por amor a
Cristo, consciente ou inconsciente, espontânea ou não, que de alguma forma
tira-nos do comodismo, do individualismo, do esquizofrenismo, das nossas dores, dos
nossos desamores, dissabores e sofrimentos e leva-nos à identificação com o
pobre, com o necessitado, com a dor alheia, impulsionando-nos a defender, a
promover, a participar e a apoiar ações que visem o bem da coletividade.
Que o Eterno nos ajude a crescer em compaixão.
Maruilson Souza
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