quarta-feira, 5 de setembro de 2012

 COMEMORAR   O   MEDO 
                                                                                                                                              Mia Couto

(Palestra proferida pelo escritor Mia Coutro na Conferência de Estoril 2011).

Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição... preciso de um abrigo... preciso de um refúgio...
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de aprender a ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer mostros, fantasmas e  demônios. Os anjos quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinara a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos.
Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de achar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audacia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estrada. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há nesse mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses comiam crianças, os chamados terrorristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mai indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservador no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africana continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou. mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por se tratar de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar arma é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imprioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requr dispendiosos aparato e um batalhã de especialistas que, em segredo, tomam decisões e nosso nome. Eis o que nos dizem: Para superarmos as ameaças domesticas precisamos de mais policia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária de nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro têm de ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de "eles".
Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade imprevisível. Vivemos como cidadãos e cidadãs e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades indivíduais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:
  • Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento?
  • Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em armamento militar?
  • Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Libia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?
  • Por que motivo se realiza mais seminários sobre segurança do que sobre jutiça? Se queremos resolver e não discutir a segurança mundial teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição maciça que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto de guerra, essa arma chama-se FOME!
Em pleno século XXI, um em cada seis seres humano passa fome. O custo para superar  fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, se dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipda pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questõs de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.
É sintomática que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vitímas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm dos que não têm medo. Sob as mesmas nuves cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte,  do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca disso, que é o medo global, e dizer: os que trabalham tem medo de perder o emprego; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Muito obrigado!
     
     
 
 
 

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